sábado, 26 de setembro de 2009

Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar

Seção: Isto é Literatura
Debaixo do chuveiro eu deixava suas mãos escorregarem pelo meu corpo, e suas mãos eram inesgotáveis, e corriam perscrutadoras com muita espuma, e elas iam e vinham incansavelmente, e nossos corpos molhados vez e outra se colavam pr’elas me alcançarem as costas num abraço, e eu achava gostoso todo esse movimento dúbio e sinuoso, me provocando súbitos e recônditos solavancos, e vendo que aquelas mãos já me devassavam as regiões mais obscuras – vasculhando inclusive os fiapos que acompanham a emenda mal cosida das virilhas (...) – eu disse “me lave a cabeça, eu tenho pressa disso”, e então, me tirando do foco da ducha, suas mãos logo penetraram pelos meus cabelos, friccionando com firmeza os dedos, riscando meu couro com as unhas, me raspando a nuca dum jeito que me deixava maluco na medula, mas eu não dizia nada e só ficava sentindo a espuma crescendo fofa lá no alto até que desabasse com espalhafato pela cara, me alfinetando os olhos na descida, me fazendo esfregá-los doidamente com o nó dos dedos, (...) e não demorou ela me puxou de novo sob a ducha, e seus dedos começaram a tramar a coisa mais gostosa do mundo nos meus cabelos co’a chuva quente que caía em cima, e era então um plaft plaft de espuma grossa e atropelada, se espatifando na cerâmica co’a água que corria ruidosa para o ralo, (...) – p. 21/22.
Editora Companhia das Letras, 2002.

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