domingo, 4 de outubro de 2009

Versos Meus I

ENCALÇO

Que tua epiderme me seja abrigo.
Que teu corpo engorde de mim.
Quando pecares, que eu seja teu pecado.
E, ao confessares, que eu seja tua penitência.
Quando te viciares, que eu seja tua droga.
E, ao te reabilitares, que eu seja tua cura.
Na doença, não me faças teu escarro.
Na febre, não me faças teu suor.
Que eu seja tua doença e tua febre.
Quando te machucares, que eu seja tua cicatriz.
E, quando te prenderem, que eu seja tua masmorra.
Que eu seja a música que tu entoas.
E a hóstia que te purifica.
E a poema que te emociona.
Quero correr em teu sangue.
Quero ser o teu sangue.
E a fadiga de teus músculos.
E o consolo de teu fracasso.
E o troféu de teu sucesso.
Enquanto quiseres, que eu seja tua asfixia.
E, quando cansares, que eu seja tua liberdade.
Fernando Sachetti

Ode ao CUJO

Seção: Língua e Etiqueta
“A menor distância entre dois pontos é sempre uma reta”, diz o teorema matemático que prima pela rapidez e evita esforços desnecessários. Se, na matemática, economia é lei, na língua portuguesa, os falantes parecem não se importar tanto em tomar o caminho mais dispendioso.
Observe:
Eu não sei onde deixei o livro. A capa do livro está caindo.

Para desfazer a repetição da palavra livro, os falantes condensam as duas frases acima através de incríveis malabarismos linguísticos do tipo:
Eu não sei onde deixei o livro que a capa dele está caindo.

Essa construção (que pretende ser) condensada está, no entanto, longe de ser econômica. E o arcabouço da língua portuguesa oferece, sim, a seguinte solução de extrema eficiência:
Eu não sei onde deixei o livro cuja capa está caindo.

Talvez haja a falsa concepção de que o uso do pronome cujo reveste a frase de muita formalidade. No entanto, nada justifica o descaso que tal pronome vem sofrendo, uma vez que ele não é um adorno com que se enfeita uma frase, mas uma palavrinha eficaz da qual não se deveria fugir.
Teorizando, cujo é um pronome que atua como um elo indicador de posse: a palavra que o segue designa algo que é possuído por seu antecedente. Esquematicamente, ter-se-ia: possuidor + CUJO + possuído.
Veja mais exemplos de malabarismos linguísticos:
Você leu nos jornais sobre a menina que o namorado dela foi sequestrado?
O cachorrinho que a pata dele estava quebrada foi adotado por uma família.
A menina que o carro dela está sempre na calçada foi multada.

Analise, agora, os caminhos mais econômicos:
Você leu nos jornais sobre a menina cujo namorado foi sequestrado? (o namorado é possuído pela menina)
O cachorrinho cuja pata estava quebrada foi adotado por uma família. (a pata é possuída pelo cachorrinho)
A menina cujo carro está sempre na calçada foi multada. (o carro é possuído pela menina)
Fernando Sachetti


Leitura obrigatória

Seção: Clichês em discussão
É inerente à raça humana rejeitar obrigações. Tudo aquilo do que não se pode fugir é encarado como fardo. E, infelizmente, é como um fardo que a leitura tem sido suportada pelos estudantes, sobretudo, às vésperas de exames vestibulares. É desnecessário dizer que o prazer advindo de uma boa leitura tem perdido espaço para outros entretenimentos. O que se questiona é o porquê de a leitura estar dissociada do prazer.
Inúmeros alunos proclamam que a rotulação leitura obrigatória, ao invés de instigar-lhes a ânsia por ler, produz efeito contrário, à medida que lhes retira a liberdade de escolha. Num primeiro momento, essa asserção até parece coerente. Entretanto, a obrigatoriedade de uma determinada leitura não significa que o aluno deva ler unicamente aquilo a que é obrigado. Em outros termos: uma leitura cobrada e uma espontânea podem, perfeitamente, ser realizadas concomitantemente.
Ademais, os números provenientes de pesquisas que avaliam a leitura no Brasil têm demonstrado que o brasileiro (e não só os vestibulandos) lê parca e insuficientemente.
Assuma-se: o brasileiro não tem intimidade com livros. Porém, conferir a culpa dessa falta de intimidade à rotulação leitura obrigatória é transferir a responsabilidade do aluno ao professor. Ressalte-se, todavia, que o professor não é o único responsável por despertar o interesse pela leitura no aluno.
Fernando Sachetti

"O Calor das Coisas", de Nélida Piñon

Seção: Isto é Literatura
Enquanto eu esforçava-me em homenagear aquela casa, o padrinho começou a fotografar-me. Fixava com avidez inesperada instantes dos quais eu viria envergonhar-me. Vergonha de não ter sentido forte, de não ter avaliado a intensidade daquele domingo numa ilha “gallega”. Eu não queria que ele me regalasse um dia com a visão de um passado sem alma. De que serve o futuro povoado de retratos amarelos? – p. 85

Haviam-me descrito a avó como uma velha graúda, de vigor camponês no seu tempo de ouro. Igualmente capaz de estripar animais, mexer-lhes as vísceras, e preparar-se jubilosa para as festas de agosto. Mas, não me iludisse agora com seu estado, a vida atual desmentia o que havia sido. Logo acostumei-me à luz pálida do quarto. A avó no leito vestia-se com uma camisola branca rendada, um traje de noiva reluzente, e mal percebia-se a respiração saída do seu corpo calcinado. – p. 87
excertos retirados de O calor das coisas, de Nélida Piñon (Editora Record, 1997).

Deleite ao martelo, à bigorna e ao estribo.