domingo, 4 de outubro de 2009

"O Calor das Coisas", de Nélida Piñon

Seção: Isto é Literatura
Enquanto eu esforçava-me em homenagear aquela casa, o padrinho começou a fotografar-me. Fixava com avidez inesperada instantes dos quais eu viria envergonhar-me. Vergonha de não ter sentido forte, de não ter avaliado a intensidade daquele domingo numa ilha “gallega”. Eu não queria que ele me regalasse um dia com a visão de um passado sem alma. De que serve o futuro povoado de retratos amarelos? – p. 85

Haviam-me descrito a avó como uma velha graúda, de vigor camponês no seu tempo de ouro. Igualmente capaz de estripar animais, mexer-lhes as vísceras, e preparar-se jubilosa para as festas de agosto. Mas, não me iludisse agora com seu estado, a vida atual desmentia o que havia sido. Logo acostumei-me à luz pálida do quarto. A avó no leito vestia-se com uma camisola branca rendada, um traje de noiva reluzente, e mal percebia-se a respiração saída do seu corpo calcinado. – p. 87
excertos retirados de O calor das coisas, de Nélida Piñon (Editora Record, 1997).

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